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TÓPICOS DE ESTUDO E LINHAS TEMÁTICAS DO GT
TÓPICOS DE ESTUDO E LINHAS TEMÁTICAS DO GT

 

As vertentes do insólito ficcional abarcam, em sentido lato, as manifestações da literatura do Maravilhoso – desde sua ocorrência na Antiguidade Clássica até sua vigência na Contemporaneidade, sob o rótulo de Sobrenatural, conforme sugere Todorov, passando pelo fértil e diversificado Maravilhoso medieval –, da literatura do Fantástico – seja como gênero literário, sistematizado por Todorov; modo discursivo, conforme defende Iréne Bessière; ou condição existencial, na filosofia de Sartre –, da literatura do Estranho – aquele também estudado por Todorov, nas fronteiras com o Fantástico, ou o delimitado por Freud, em sua teoria psicanalítica –, da literatura do Realismo Maravilhoso ou Mágico – a partir das proposições de Carpentier e dos estudos de Chiampi –, da literatura do Realismo Animista em África – sugestão apresentada por Pepetela, cujos estudos ainda são embrionários – e tantas outras manifestações literárias ainda não focalizadas com atenção pela crítica.

 

Dentro desse amplo perímetro do insólito movimentam-se ainda as representações dos mitos e lendas, incluindo-se aqui desde as histórias míticas herdadas de tempos imemoriais até as revisitações contemporâneas: por exemplo, de Ovídio a Marina Colasanti, de Homero a Dante, de Goethe a Robert Coover. Incluem-se ainda as lendas e narrativas do maravilhoso popular, tanto em suas versões tradicionais (conforme as conhecemos das antologias de Basile, Perrault, Grimm, Andersen, Teófilo Braga, Câmara Cascudo, etc.) até as sofisticadas versões assinadas por Hoffmann, Lewis Carroll, Condessa de Ségur, Monteiro Lobato, chegando-se às criações de J. K. Rowling, Michael Ende, Guilhermo del Toro. Destinadas ao público adulto e/ou infanto-juvenil, muitas das obras do insólito transitam livremente entre os campos do mítico, maravilhoso, gótico ou surreal, desenhando uma paisagem multifacetada e instigante, para as quais somos levados por autores como Kafka, Tieck, Fouqué, Swift, Bram Stoker, Tolkien, J.J.Veiga, Guimarães Rosa, Carlo Collodi, A. Carvalhal, etc.

 

Nesse sentido, o leque das vertentes do insólito ficcional é amplo, abarcando uma diversidade significativa de manifestações estéticas em que o trabalho ficcional é sustentado pela emergência de situações insólitas e que geralmente colocam o leitor em contato com o desconhecido, o inexplicável. Assim, pode-se sugerir a manifestação do insólito ficcional sempre que elementos de qualquer uma das categorias da narrativa – tempo, espaço, personagem ou ação – provoquem, nos seres da ficção – narrador, narratário, personagem – e/ou nos seres da realidade – leitor virtual e empírico – um incômodo. Trata-se de uma impossibilidade de leitura passiva e pacífica, comportada e conformada, em que se tem a marca da negação presente em insólito, inaudito, incomum, inusual, inusitado, inesperado, insuficiente, incongruente, infame, incorrigível, ilógico, incrível, inverossímil, irreal, infinito, ou se tem um transbordamento diante das expectativas, atingindo-se o extraordinário – para além da ordinariedade – ou o sobrenatural – para além da naturalidade – e, mesmo, a decepção ou a frustração. O insólito ficcional condiciona um ato de leitura desconfortante, que independe dos valores éticos ou estéticos do leitor real.

 

O desconforto provocado pela narrativa que tem na sua base o trabalho com o insólito pode ser lido à luz da reflexão todoroviana sobre a literatura fantástica. Ainda que Todorov tenha demarcado seus estudos a partir da literatura fantástica do século XIX, o conceito de hesitação, desenvolvido por esse teórico, é esclarecedor quanto ao efeito provocado por muitas narrativas que têm como mote o insólito, sejam elas advindas do século XIX ou não. De acordo com Todorov, a condição imprescindível para a emergência do fantástico é a hesitação, que ocorre em dois planos: no interno à narrativa, com as personagens, que hesitam diante de alguma coisa, de algum acontecimento que foge à norma; e no plano externo à narrativa, no plano da leitura, com o leitor, que é levado a hesitar perante o seu contato com alguma situação insólita no ato da leitura. A definição desse efeito de hesitação defendido por Todorov tem como alicerce alguns apontamentos de teóricos como Louis Vax e Roger Callois. Vax considera que uma narrativa fantástica sempre desestabiliza o leitor em função de inserir subitamente, em meio ao cotidiano, uma situação ou fato inexplicável, fora da ordem, desestabilizando-o. Callois, na mesma linha, explica o fantástico por intermédio da ideia de ruptura da ordem estabelecida.

 

O que se tem, de acordo com tais reflexões, é a ideia de que um dos pontos importantes para a definição de uma narrativa que recorre ao insólito como base é o efeito provocado por ela. Essa linha de entendimento entra em consonância com um estudo de Julio Cortázar sobre o assunto, na medida em que o fantástico é explicado por intermédio do sentimento que ele provoca. Para Cortázar, o fantástico não é determinado somente pelas circunstâncias narradas, mas especialmente pela sua capacidade de retirar o leitor de sua rotina, de uma ótica usual de ver o mundo, instigando-o a observar o mundo de uma forma diferente da habitual, e a reler e a reescrever o mundo que o rodeia. Assim, o insólito ficcional possui uma ordem sempre aberta; nele, não há uma superfície plana e única, porém, sua estrutura sugere-se como um caleidoscópio, em que um novo mosaico é percebido de acordo com a ótica que se imprime no momento da leitura.

Alejo Carpentier, ao desenvolver o conceito de real maravilhoso como uma espécie ficcional peculiar desenvolvida por autores latino-americanos, assinala também o efeito provocado pelo insólito. O maravilhoso, para Carpentier, é aquilo que o leitor recebe como algo assombroso. O assombroso tem essa natureza em função de enredar-se por intermédio do insólito, de tudo o que escapa às normas estabelecidas.

Nesse sentido, o insólito pode ser relacionado não apenas a obras pertencentes a um gênero, mas a trabalhos ficcionais pertencentes a gêneros diversos. Os estudos sobre essas modalidades de trabalho com o insólito pretendem, assim, organizar os modos diversificados ficcionais do insólito, procurando contribuir não só para a compreensão de suas formas de enredamento, bem como para o entendimento de como essas formas, desestabilizadoras da ordem, são potenciais para a revisão do nosso mundo.